terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Mel da Tâmara


Caminhando pelo Saara de sua subsistência, um beduíno errante, conhecido em toda dimensão do deserto por Sharif, resolve entregar-se ao descanso dos deuses. Merecidamente, afinal naquele dia já havia viajado por horas sob o sol causticante na sua seara de amor, lutas e conquista. Seu corpo carecia de repouso e seria ali, debaixo da tamareira o lugar ideal para repor energias. Assim, no oásis de seus encantos, sob a sombra fresca da tamareira, na solidão do pastoreio, cogitou instalar-se ali, expectante que o céu azul turquesa do momento, mostrasse no horizonte dos seus olhos reluzentes, o pôr-do-sol cheio de presságios bondosos, uma visão poética do sol se escondendo atrás das dunas, as quais ele se negava a não contemplar.

Cobrindo sua cabeleira, um turbante nácar expunha sua genialidade e sua elegância. Com o pensamento flutuando no universo das recordações, vagou por épocas belíssimas remetendo-se à sua infância junto à família, aos primeiros aprendizados e lições recebidas. Acessou fragmentos de sua jovialidade e, num estalar de dedos, surgiu na sua mente requintes de um acontecimento que marcou sua vida, suas ações, seu respeito à natureza e de quem dela abastece as necessidades do corpo: o sabor adocicado da tâmara, feito a essência de mel suave. Sua boca salivou sentindo o prazer do seu sabor. Nesse momento, já no acalanto da noite, olhou para o céu todo iluminado por uma constelação de luzes proféticas, agradeceu ao Divino as bênçãos concedidas e se entregou à meditação.

Oh, como é perfeita a obra do Criador! Sonorizou num estufar do peito e deliciou-se com o momento. Só ele e uns poucos conheciam a felicidade de sentir aquele sabor inenarrável, e dormir sentindo o aconchego de uma tamareira bem no abstrato mundo das ilusões, dos sonhos e da esperança. Abriu preguiçosamente os braços, bocejou calmamente, cerrou os olhos, com a alma vigilante descansou o corpo dolorido pelas viagens da sua vida.

Durante o sono, transmutou-se para outra realidade, alvissareira e enigmática. Atraído pelos devaneios da mente, encontrou-se com Malba Tahan. Pela fluidez dos sentidos, tornou-se impossível não divisar-se frente a frente com o homem que calculava: Beremiz Samir, o gênio dos cálculos. Beremiz exercitava com tanta determinação sua capacidade de fazer cálculos que, aproveitando dessa sua faculdade tão extraordinária, resolveu ajudar o seu patrão nos negócios com as tâmaras. Passou então, a contar todos os frutos dos cachos das tamareiras pelos oásis sob o seu domínio. Sua habilidade com a matemática era tão fascinante, que já o havia permitido contar os pássaros em bando no céu; folhas das árvores durante o trajeto de sua viagem à Bagdá do Século XIII; e todas as abelhas de um enxame.

Sharif, nômade por ideal e origem, conhecia muitas histórias e lendas sobre as tamareiras e o seu fruto. Na sua maioria, contadas por diferentes etnias, pesquisadores e andantes do árido deserto. Orgulhava-se de narrar aos viajantes menos esclarecidos às vantagens, curiosidades, e as crenças religiosas que elas representam para os povos da imensidão desértica.

Não era um estudioso, tampouco conhecia de botânica, muito menos havia sentado num banco escolar tradicional. Sua sabedoria vinha de uma mente prodigiosa, adicionada as experiências da vida adquiridas nas suas andanças pelo deserto escaldante e, de ter aproveitado as oportunidades como ouvinte se informar de assuntos diversos travados entre os inúmeros desconhecidos que encontrara pelo caminho. Com esse estranhos, embora mestres por experiências vividas, pode absorver cada detalhe das suas histórias contadas, tendo como cenário o deserto e suas inóspitas surpresas. 

Mesmo na sua maneira simples de expressar, Sharif dava “show” de conhecimentos e se envaidecia com o prazer de poder compartilhar o seu saber, abordando os fatos com maestria e singularidade. Atitude digna de uma pessoa que realmente fazia justiça à sua personalidade de incansável desbravador de conteúdos. Focava com desenvoltura os temas relativos ao deserto, desde o “b a bá” até as mais notáveis histórias de outras civilizações.

Ao se despertar-se do sono reparador, surpreendeu-se diante de si, uma pequena comitiva de mestres e alunos em viagem de estudos, desenvolvendo os seus primeiros trabalhos “in loco”, com a finalidade de absorver experiências além dos livros. Assim que o viram deitado na tranquilidade que lhe era permitido, sorvendo a embriagante aragem da manhã, aproximaram-se cordiais, na tentativa de manter segura aquela oportunidade rara: estarem frente a frente com o homem símbolo daquele território. Apresentaram-se, em seguida indagaram se ele estava disposto para conversar e revelar algo relevante dos seus conhecimentos a respeito do Saara, sobre o qual tão bem conhecia. 

Com muita disposição se prontificou a colaborar. Para ele era um prazer fazer aquele obséquio. Ao começar os seus relatos, coincidência ou não, com o sonho que acabara de vivenciar, escolheu como tema a tamareira. Sua importância na vida dos povos do deserto, outro mundo exclusivo dos bravos e destemidos de raça e fé. Seria uma forma de agradecer as tantas vezes que aquela majestosa palmeira, havia lhe dado o alimento tão necessário, conforto e o bem estar de sua sombra.          

Lembrou-se providencialmente da página de uma revista americana, guardada com muito cuidado nos seus alforjes, sobre a qual um sábio viajante a traduziu para ele. Pegou o papel já amarelado, mostrou a cada um, para que não houvesse dúvida quanto a veracidade dos fatos, contou o seu conteúdo, que dizia entre outras informações, uma que considerou muito importante: “Segundo a FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - os países asiáticos e africanos, principalmente Egito, República Islâmica do Irã, Arábia Saudita, Paquistão, Iraque e os países vizinhos juntos, produzem aproximadamente 98% das tâmaras do mundo. Estados Unidos, Espanha e México produzem o restante”.

Acrescenta a metéria, que as tâmaras são um cultivo de subsistência de extrema importância em quase todas as regiões desérticas. Para milhões de pessoas constituem um importante alimento nutricional, vindo a contribuir de forma significativa com a cultura alimentar e a agrobiodiversidade da população.     

A partir daí, o assunto foi fluindo naturalmente, deixando evidente o seu vasto conhecimento. Esclarece ainda o simpático beduíno, que a tamareira é uma espécie de palmeira, que nasce nas alturas, símbolo de retidão e vitória. Crescem para cima e para baixo, suas raízes descem as mais profundas camadas, até encontrar solo rochoso onde se abraçam nas rochas, adquirindo força para suportar os fortes ventos e tempestades do deserto, mantendo-se sempre de pé.

Fazendo-se valer dos seus conhecimentos científicos, adquiridos através do convívio com intelectuais do deserto, e pela sua sede pelo saber, continuou dizendo que a tamareira ou datileira – Phoenix dactylifera – é uma planta de quinze a vinte metros de altura, surgindo às vezes em touças, com vários troncos partilhando o mesmo sistema radicular, ainda que, não pertencendo a mesma touceira, mas de forma isolada. As folhas são frondes pinadas, com até três metros de comprimento, pecíolo espinhoso e cerca de 150 folíolos. Cada folíolo tem por volta de trinta centímetros de comprimento e dois centímetros de largura. Quando terminou, todos se entreolharam incrédulos com o que acabaram de ouvir, principalmente por ter partido de um simples homem do deserto.

Concluído sua explanação, por meio da manifestação dos gestos de suas mãos, apontou para todas as tamareiras que se exibiam elegantes no oásis em que se encontravam. Insatisfeito com o seu argumento, resolveu não dar por terminada sua fala. Então, disse a todos, que alguém o havia informado certa vez, sobre um pesquisador brasileiro, doutor em melhoramento de vegetais de nome Manoel Abílio de Queiroz, membro do Centro de Pesquisas Agropecuárias do Trópico Semi-Árido e o Centro Nacional de recursos Genéticos, órgãos de estudos da Embrapa, no Estado de Pernambuco, o qual havia dito que: “Uma boa  surpresa foi à adaptação da planta no sertão. Começou a dar frutos com quatro anos depois de plantada. No Oriente Médio, isso acontece aos oito anos”. Acrescentou ainda que, além do fator econômico, a tamareira também oferece vantagens ambientais. Elas fertilizam o solo, suavizam a temperatura e interrompem a progressão das zonas em processo de desertificação.

Demonstrando serenidade, atitude comum nos contadores de histórias, Sharif disse que a tamareira é uma planta bastante cultivada há milênios pelos seus frutos comestíveis. Sua área natural de distribuição é desconhecida, mas supõe-se sua origem ter surgida nos oásis do deserto  da região norte africana.

Há controvérsias, algumas pessoas, acreditam sua origem é do Sudeste da Ásia. Talvez por terem servido de alimento e abrigo aos egípcios, babilônios e assírios. Há também aqueles fervorosos nas suas crenças religiosas, que afirmam ter Moisés se servido do seu fruto na sua saga de encontrar a Terra Prometida. Aos seguidores do islamismo e sua fé a Allah, acreditam que o profeta Maomé na sua cruzada pelo deserto, teve nas tâmaras o seu principal alimento.

Mesmo depois de ter prestado ricas informações, ainda não satisfeito, Sharif resolveu enveredar-se mais uma vez no conhecimento científico, ao dizer que a planta se trata de uma espécie dioica, apresentando na sua genética, flores masculinas e femininas responsáveis pelo nascimento de palmeiras diferentes. Sendo que, só as fêmeas produzem frutos, polemizados pelo pólen fornecido pelos machos.

Continuou seu relato já em estado de exaltação. Estar ali, conversando com pessoas tão ilustres, ressaltando suas experiências, disse sem se hesitar: “Segundo informações provenientes de alguns comerciantes brasileiros e de um livro que mantenho entre os meus guardados, traduzido para o idioma árabe pela Universidade do Cairo. As primeiras plantas da tamareira foi introduzida no Brasil, há muitos anos. Porém estudos sistemáticos realizados com o sua utilização para o cultivo, revela que, o primeiro registro de sua introdução data de 1928, quando algumas fontes reprodutivas chegaram a São Paulo. Na época, alguns estudos foram realizados na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, onde foram originadas algumas variedades”. De forma instintiva, Sharif, imediatamente de posse do livro, abriu na página desejada, comprovou o seu relato.  

Depois de uma breve pausa e uma boa respirada, Sharif quis certificar-se se seus atenciosos ouvintes tinham alguma dúvida, ou se estavam satisfeitos com cada detalhe abordado. De repente começou a sorrir provocando a curiosidade de todos. Misturando palavras desconexas com o seu riso, passou a contar a história de um laociano de nome Sansunnang Vaiollang, vindo da região de Luang Prabang no Laos, justamente o local considerado pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Conta Sharif que o "laociano Sansunnang, de posse de uma foto em que, se estampava várias tamareiras de sua terra, olhou para as nossas palmeiras aqui do deserto, começou a dar gargalhadas sem explicação. Depois de muito tempo, foi que entendeu o motivo de tanta graça. Simplesmente porque as tamareiras de sua terra eram anãs. Ele brincou com a situação dizendo que as da sua região eram muito jovens, mas que um dia seriam tão grandes quanto as nossas. De repente mudou sua jeito divertido, para uma aparência demonstrando seriedade, começou a me contar como se fosse realmente um grande entendido no assunto. Disse ele, que a tamareira anã – Phoenix Rebelenni O’Brien – é uma pequena palmeira originária da sua região na Ásia. Ela é largamente cultivada como planta ornamental nos trópicos e nas regiões subtropicais e temperadas. Possui estipe de dois a quatro metros de altura e cerca de dez centímetros de diâmetro", conta.

Acrescenta: "As plantas femininas ocorrem geralmente agrupadas em grandes touceiras. Seus frutos alongados, com aproximadamente um centímetro e meio de comprimento, são numerosos e de coloração variando de vinho a preto quando maduros." Terminou sua exposição mostrando-se uma pessoa além do senso de humor à flor da pele, um grande caráter, completa Sharif.

Além das lendas e histórias de conteúdos mágicos, o atencioso beduíno, contou aos curiosos que a tamareira é considerada árvore sagrada e mágica há milhares de anos. No Egito era uma espécie sagrada, a folha símbolo do deus Heh, que representa a eternidade. Mais tarde, passou a ser símbolo de fecundidade, fertilidade e vitória.

As tâmaras também são usadas como doces ou como quitutes afrodisíacos. Os egípcios as comiam antes de fazer sexo. E ainda, tem como lenda a relacionada ao desterro da Virgem Santíssima no Egito, em que, Maria havia procurado abrigo e descanso sob a sombra de uma tamareira, a qual se inclinou para que as tâmaras ficassem ao alcance de suas mãos.

Sharif sem perder o ritmo sempre atencioso com os seus ouvintes, mestres e estudantes que deixaram sua Universidade em busca de conhecimentos fora dos padrões de ensino desenvolvido dentro do próprio Campus Universitário. Pelo que demonstravam, pareciam estar em estado de graça com suas maneira de contar sobre a palmeira e seu fruto, quando mencionou a importância dos Paleontólogos, os quais também deram sua contribuição na rica história das tâmaras.

Segundo esses pesquisadores incansáveis, uma semente com cerca de dois mil anos, foi encontrada nas escavações realizada em 1963, no deserto da Judeia. Esta preciosa descoberta foi plantada por cientistas israelenses e germinou, segundo artigo publicado na revista especializada Science. A região é a mesma da antiga fortaleza do rei Herodes, em Masada, perto do Mar Morto.

Na ocasião, os cientistas encontraram um grupo de sementes, que as mantiveram em uma sala com temperatura ambiente adequada, na intenção de estudá-las mais a fundo. O lugar era famoso por suas tâmaras com propriedades medicinais e principal produto de exportação da região hoje ocupada por Israel.

O simpático beduíno Sharif observou atentamente a todos, depois olhou para o alto e notou quão tinha passado o tempo. O sol já estava no auge de seu posicionamento no céu, foi quando teve noção de que a conversa que seria para poucos minutos, já se passara pelo menos um quarto do dia.

Embora os mestres e estudantes estivessem satisfeitos e impressionados com os requintes dos esclarecimentos, fez questão de encerrar sua fala com algo lúdico, contando que Ali Babá e os Quarenta Ladrões também se beneficiaram tanto da doçura do fruto quanto do repouso de sua sombra nas imediações da caverna encantada de Sésamo.

Agora sob os encantos de Mil e Uma Noites de imagens e conteúdo. De ter falado pra uma turma de elevados padrões culturais, aquele seria o momento ideal para colocar-se a caminho de sua jornada. Não sabia quanto tempo duraria, mas tudo bem, já havia descansado por sete sois e sete luas. Assim o dever o aconselhava cumprir sua missão e seguir adiante.

Este relato bem que poderia ter sido apresentado por um dos alunos presentes naquele dia de memorável aprendizado e, servido de subsídio para sua tese na Universidade, sobre vegetais do árido e semi-árido.

No entanto, se algum dia encontrar um beduíno com as características de Sharif procure-se aproximar dele. Se não for o próprio Sharif, não maldiga falta de sorte. Todos os povos do deserto têm lindas histórias pra contar. Verá que existe doçura no olhar e nas atitudes dos pacíficos de alma, bondade cultural da sua raça e no mel da tâmara.



Nota: Esta crônica Mel da Tâmara já esteve disponível aqui mesmo no Bússola Literária, desde 26 de setembro de 2009. Agora resolvemos dar uma repaginada e, revivê-la com várias modificações no seu texto original. Quem sabe também, seja o momento para que sirva como objeto de discussão num fórum de debates, abrangendo não só o seu conteúdo sob forma de pesquisa, mas literário e ortográfico.


Imagens exclusivas por Neli Vieira: ilustradora, artista plástica, escritora e poetisa.

Texto baseado de excertos compilados na internet.



A propósito, você já acessou a fan page do meu livro infantil Juju Descobrindo Outro Mundo? Não imagina o que está perdendo. Acesse: http://facebook,com;jujudescobrindooutromundo.


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