sábado, 22 de fevereiro de 2014

Hermann Hesse, o escritor que valorizava os princípios doutrinários


Esta publicação do Bússola Literária provavelmente irá atingir com mais frescor os leitores que conhecem a temática literária de Hermann Hesse. Aqueles que tiveram o privilégio de infiltrar no seu domínio linguístico e nas suas sutis exposições sobre o destino do homem como ser e como coadjuvante de uma sociedade às vezes incompreensível e repleta de conceitos dogmático e familiar.

A vida de Hermann Hesse é um tanto curiosa. É recheada de conturbações atemporais, com muitas oscilações de altos e baixos. Talvez tenha sido este o motivo do escritor transpor para suas obras fragmentos pessoais de sua vida, como se fossem um ingrediente necessário no tempero de sua narrativa.

Algo parecido com o cineasta Alfred Hitchcock, que por sua vez, fazia questão de aparecer nos seus filmes, mesmo de forma quase imperceptível, abrindo uma porta ou como um simples porteiro de edifício, sem dizer sequer uma palavra, apenas para estar ali, compondo a ideia.

No livro Demian, Hesse conta a história de Emil Sinclair, criado nos fundamentos dos princípios religiosos da família, desconhecia a realidade à sua volta. Até encontrar o temido Franz Kromer que estudava na mesma escola que frequentava. Com ele e as perseguição a que era submetido, foi compelido a descobrir o que realmente haveria que enfrentar na escola da vida.

Este novo estágio do autoconhecimento, fez com que descobrisse a outra face destemida de sua personalidade que se encontrava adormecida. Afloram-se também, no conjunto das novidades, os seus questionamentos existenciais.

A partir do momento que conhece e passa conviver com Max Demian, colega de classe que já estava habituado com o mundo austero da vida. O qual conhecia com maestria os meandros da prática do bem e do mau, Sinclair teve coragem suficiente para se defender das provocações de Kromer.

Em Sidarta, Hesse traduz em livro sua viagem à Índia 1911. Depois de conhecer vários lugares, principalmente os templos religiosos, Hesse, escreveu Sidarta narrando sua história inspirada no Buda (Siddhártha Gautama), o Iluminado. E que também ganhou a imortalidade pelo povo oriental, como Gotama, o Sublime.

No livro Sidarta o personagem infiltra no estudo dos vedas, em busca da iluminação, da paz de espírito e no seu autoconhecimento. Com o amigo Govinda, juntam-se aos “samanas” e logo aprendem a controlar os sentidos: a pensar, esperar e jejuar. O seu próximo passo seria ir em busca do Absoluto, do seu Eu espiritual.

Sua tarefa não é nada fácil. Mesmo tendo passado por quase todas as experiência ao seu alcance, ainda precisava de algo mais, encontrar de fato o seu autoconhecimento. Nestas suas andanças conhece Vasudeva, o balseiro. Com ele passa a viver momentos de tranquilidade e a ouvir a voz do rio.

O livro é interessantíssimo. Alguns chegaram a conceituá-lo como novela. No entanto, É mais um livro que Hermann Hesse aprofunda no íntimo do ser.

Em O Lobo da Estepe, Hermann Hesse mais uma vez se transpõe de maneira sutil, para viver o personagem Harry Hailler, uma pessoa culta que gosta de ler, ouvir músicas clássicas, teatro e ocasionalmente dar suas caminhadas noturnas, para manter-se ciente do mundo que o cerca. Embora com todos esses requisitos de uma pessoa notável, preferia viver na solidão, distante da realidade da época.

Harry Hailler sobrevive nesse ambiente inteiramente pessoal, até encontrar Hermínia, Maria e Pablo. A partir daí, sua visão adquire robustez, através dos ensinamentos filosóficos, sociológicos, espirituais e sua preocupação com a morte. Afinal, trata-se de um cinquentenário, então a morte pra ele era uma questão de tempo, mesmo já tendo na sua insatisfação pessoal desejado abreviá-la.

Outro livro de Hesse que merece ser absorvido nas suas entranhas.

Em O Jogo das Contas de Vidro, a história conta a vida de José Servo, o estudioso Magister Ludi, membro do respeitável Jogo de Avelório; mestre do Jogo que dá nome à obra: O Jogo das Contas de Vidro.

Por se tratar de uma criação ambientada numa época do futuro bem distante de quando foi escrito, Hesse dá um salto no tempo, e cria na composição do livro uma comunidade formada por intelectuais e pensadores de altos conhecimentos. É evidente que os embates filosóficos, espirituais e ideológicos são constantes. O que torna o conteúdo forte e profundo na sua concepção.
         
O curioso é que a história foi criada em 1943. Mesmo em se tratando de uma época tão remota, a mensagem é visionária, intricada, mas capaz de alimentar a expectativa do leitor.


Sua obra virou nome de uma banda norte-americana


No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.
Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.
Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece até 1931.
Ainda em 1919, Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.
Nesse entretempo Hesse pu­blicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade particular.
Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.
Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel.
Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano disse: “Se o senhor quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de Hermann Hesse tornaram-se su­cesso também nos Estados Unidos quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru.
Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.
Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil. A maioria delas ainda estão preservadas.
Não apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como Tho­mas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana.
Hesse fazia questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.
Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.
Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em Mon­tagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte de seu acervo. 

Otto M. Carpeaux destaca o escritor em busca de libertação 

É oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, o publicou em língua alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.
Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Car­peaux é correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.
Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei (Edgar Welzel, autor deste texto). Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco.
“Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.
Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Mon­tagnola, aos 75 anos. Trans­corridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hes­se aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Eu­ropa, Estados Unidos, Ja­pão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um au­tor de interesse universal. Tal­vez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hes­se nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.

Nota: Uma parte deste texto foi publicada na Revista Bula, categoria “Ensaio”, por Edgar Welzel em janeiro de 2014.    



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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Infância, saudosa inocência


As gerações dos anos 50 ou décadas anteriores, um tempo não muito distante, hoje pode ser considerada careta, antiquada, ultrapassada, aos olhos dos jovens antenados do momento. Mas andam de cabeça erguida conservando os princípios que a sociedade da época os mantinha com orgulho. Princípios estes, considerados relíquias memoráveis que não merecem ser apagadas. Uma descendência que privilegiava o caráter sem mácula, coeso e sustentado por ensinamentos alicerçados na boa conduta dos seus antepassados.

É essa geração que tenta de forma incansável colocar no ápice dos trilhos, o futuro de um nome, de uma identidade, de um poder irrestrito de cultivar a luminosidade de um passado nobre.

Na verdade, nem todas as personagens dessa época ficaram no obscuro, no ostracismo. Sendo autênticos remanescentes de um tempo onde a felicidade simples e contemplativa imperava. Distante da tecnologia dos modelos contemporâneos, mas, com maestria, exerciam a arte da criatividade ao confeccionar de forma artesanal os seus próprios brinquedos.

Não dispunha de vídeo games, micro computador, internet, tevê em cores, a cabo, MP3, MP4, iPad, tablet e um monte de recursos eletrônicos já profetizados por Marshall MacLuhan na sua obra "Guerra e Paz na Aldeia Global (1968)", e que as crianças de hoje já os conhecem desde o parto. Um fato tão real quanto aos modernos equipamentos cirúrgicos e preventivos hoje disponíveis.

Até os anos 70/80, as músicas continham além de melodias saborosas ao deleite dos ouvidos, letras construtivas, elegantes, mensagens singelas e graciosas. Os recursos fonográficos estavam longe do alcance do século XXI, mas com orgulho os sobreviventes desse período se envaidece têlo vivido. As crianças cultivavam a inocência. Acreditava em Papai Noel, fadas, anjos, cegonha, amizades autênticas e, sobretudo em Deus.

As crianças tinham dons inventivos e criativos. Brincavase de carrinhos, às vezes construídos por eles próprios; bolinha de gude, pião, cabo de guerra, arremessar finca, papagaio, pique esconde, cabra cega, a sua direita está vaga, salve cadeia e muitas outras brincadeiras.

As garotas divertiamse com bonecas simples  sem os atuais recursos de voz  às vezes de pano, casinha, cozinhadinho, entre outras diversões com a participação dos garotos. Poderia nesta explanação, muito bem omitir essa relação de atividades compartilhadas, também não seria justo serem ofuscadas. A galerinha atual, talvez não as conheça, por isto estão aí modestamente mencionadas.

Era uma infância que não precisava de academia. Gastavase muita energia com atividades inocentes e virtuosas. Estudavase muito... Era uma determinação dos pais, baseada no princípio de que, quando crescessem haveriam de gozar uma vida melhor e mais abundante. Sem quem sabe, ter que enfrentar as dificuldades ocorridas com os seus genitores na labuta diária, mesmo existindo boa vontade e determinação. 
  
Esse era o argumento utilizado como forma de incentivo, na vanguarda de encarar o futuro com alicerce estruturado, diante das intempéries do cotidiano.

O respeito, não se traduzia em medo, mas em obediência, em princípios. Pedir benção, não significava uma obrigação, mas uma forma dos pais privilegiarem sua cria com uma dádiva vinda dos céus. E tomar banho, escovar os dentes, não era uma provocação, mas um cuidado indispensável à higiene. 
   
E hoje, mudou-se muito? Nem tudo. As brincadeiras de outrora não fazem mais sentido para quem nos seus primeiros movimentos já utilizam carrinhos para locomoção. No entanto, a tecnologia e a consequente atitude fria dos objetos modernos, deteriorou o lúdico que minava na pele queimada pelo sol. E no coração radiante por novas descobertas. Êhhhhh... Saudade!

O suor que escorria pelo corpo, depois de uma tarde inesquecível desencadeada por uma eletrizante partida de futebol  as peladas , pelas ruas nuas e cheias de pedras das cidades sem o asfalto, ou nos campos improvisados sem gramados espetaculares, mas de chão duro e seco. No coração dessa garotada, reinava a inocência, a ausência da maldade declarada, existia o perdão e o esquecimento.

Chegou à hora de tocar a bola pra frente. Ir de encontro à bola da vez, em sintonia com o que há de mais avançado no mundo cibernético. Atingir a máxima capitulação da fronteira entre a infância e a vida adulta.

Antes se chegou à lua. Nos dias de hoje, o universo ficou relativamente pequeno, tornandose possível e fácil, transferirse das histórias de ficção à realidade plenamente tocável.

Enquanto uns viviam no condicionado paradigma do convencionalismo da época, hoje as preocupações giram em torno do visual, da estética.

É normal encontrar crianças com menos de cinco anos, frequentando salões de beleza, usando maquiagem, cabelos adornados, unhas pintadas, óculos escuro, sapatos de saltos altos, roupas espelhadas nos artistas da tevê, do cinema, ou na própria mãe. Vitrine dinâmica na profusão contínua das criações e inventos do mundo globalizado.

Para os meninos de hoje, os brinquedos eletro/eletrônicos não são duráveis, as inovações estão em mutação contínua e sem aviso prévio. E, na natureza humana as ansiedades aumentaram, antecipando de forma prematura de uma fase lírica, inesgotável de generosidade e irresponsabilidade, para uma fase adulta totalmente responsável  pelo menos é o que se pressupõe  com total aquiescência dos pais, da família.

Essa atitude negligente e despropositada tornouse alvo fácil à propagação e revelação dos casos escabrosos de comportamento, de pedofilia, sedução, corrupção, aliciamento, gangues, sequestro, tráfico. Enfim, crimes de todos os matizes contra a criança.

Comprovando sem rodeios, que a inocência já foi ultrajada, pelo menos há muito tempo. E a sociedade com os olhos vendados, na sua condição torpe e inadequada, continua os impedindo da contemplação do horizonte infinito. Com a prática responsável dos ensinamentos Divino. 
   
Sabese também, que com todo o advento da modernidade, as crianças de hoje, encontramse mais vulneráveis. Os casos de internações aumentaram, a ciência evoluiu, enquanto as doenças misteriosas se intensificaram. As infecções hospitalares prosperaram, o famigerado fantasma da fome e da sede mostrou a sua cara.

Na África e em outros lugares do planeta menos assistidos, a Aids com sua foice impiedosa não tem poupado o seu golpe fatal. Se procurar nas anotações dos hospitais, clínicas e postos de saúde, vai-se encontrar doenças que nem os pesquisadores mais notáveis de algum tempo atrás, imaginariam que um dia viessem a existir.

Não há dados comprovados de que no passado os casos graves do presente também se manifestavam com tanto rigor, apenas uma certeza indiscutível se verifica refletida no incondicional mapa da sobrevivência. Antes a imunidade infantil gozava de mais prestígio. Não se via com tanta incidência as intoxicações causadas por alimentos contaminados.

As produções agrícolas não sofriam com o excesso de instrumentos e métodos de controle de pragas, como agrotóxicos poderosos, aplicados de maneira irresponsável pelos produtores em detrimento de lucros fáceis. O cultivo de frutas e legumes era natural, quase que totalmente feito de maneira simples, orgânica, mas de grande eficiência nutritiva.

Por que se tornou necessário a utilização de inúmeras vacinas preventivas? Ter que deixar a marca – teste do pezinho – do pé do recém nascido gravada como forma de detectar males oportunistas, endêmicos e contagiosos? Se antes, com um simples chazinho caseiro, ou uma simples imposição de fé – crendices – por meio das benzições, praticadas geralmente pelas pessoas mais idosas  tradição herdada de várias gerações. Propiciava o bem estar tão desejado, preservando a saúde em toda sua plenitude? 

Será que a ignorância tinha lá o seu valor? Ou será a ignorância a consequência de tantos acontecimentos positivos? Será que foi essa mesma modernidade através dos meios de comunicação que veio trazer à tona as evidências do real, revelando esses males à nitidez dos acontecimentos tão cruéis?

Todas estas perguntas bailam impunes nos lares de nossa comunidade assistida ou não, porém sedenta de proteção, sedenta do olhar dos céus.

A perpetuação da inocência não é mais um predicado só das crianças. Os adultos já fabulam essa virtude, mesmo de forma abstrata, mas com o inconsciente em pleno exercício de sua nobreza infantil.

Fernando Pessoa, através de fragmento do seu poema Girassol é quem dará o golpe de misericórdia para esse relato de reflexão. "...Eu não tenho filosofia, tenho sentidos...// Se falo na natureza não é porque a amo, amo-a por isso, // Porque quem ama nunca sabe por que ama, nem o que é amar...// Amar é a eterna inocência// E a única inocência é não pensar."


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Imagem: Google imagens


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A última entrevista de Graciliano Ramos


Bússola Literária tem pouco a acrescentar sobre esta esclarecedora entrevista do jornalista e escritor Homero Senna com o genial Graciliano Ramos, numa manhã de dezembro de 1948, dez anos após a publicação de uma das suas mais destacadas obras, “Vidas Secas”.

Em 2013, Graciliano completaria, se estivesse vivo, 121 anos de existência. No entanto, também foi o ano em que se registrou os 60 anos de sua morte, 20 de março.

Embora de aparência calma, ponderada e racional, tinha os seus pontos de divergências, como todo mortal. Por exemplo, tinha verdadeira repulsa pelo Movimento Modernista Brasileiro, o qual o denominava de “Movimentozinho”. E que teve sua maior manifestação popular, a partir da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, de 11 a 18 de fevereiro de 1922.

Entre os escritores modernistas destacaram-se Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira. Na pintura, Anita Malfatti, que realizou a primeira exposição modernista brasileira em 1917.

Bússola Literária esteve em busca de algumas informações sobre o movimento, para que você se situe melhor, em determinada parte da entrevista: A Semana de Arte Moderna teve como objetivo mostrar as novas tendências artísticas que já vigoravam na Europa. Esta nova forma de expressão não foi compreendida pela elite paulista, que era influenciada pelas formas estéticas europeias mais conservadoras.

Foi também uma explosão de ideias inovadoras que aboliam por completo a perfeição estética tão apreciada no século XIX. Os artistas brasileiros buscavam uma identidade própria e a liberdade de expressão.

Com este propósito, experimentavam diferentes caminhos sem definir nenhum padrão. Isto culminou com a incompreensão e com a completa insatisfação de todos que foram assistir a este novo movimento. Logo na abertura, Manuel Bandeira, ao recitar seu poema Os sapos, foi desaprovado pela plateia através de muitas vaias e gritos.

Bom, o melhor está por vir, a entrevista. Aproveite esta rara oportunidade, não só como fomento à cultura, mas como material de notável importância para pesquisa. Se achar conveniente, seu comentário será bem vindo. Boa leitura...


A última entrevista de Graciliano Ramos



Numa manhã de dezembro de 1948, dez anos após a publicação de “Vidas Secas”, Graciliano Ramos se confessa ao jornalista e escritor Homero Senna, em sua última longa entrevista.

Inicio a conversa, por pedir a Graciliano Ramos que me diga alguma coisa sobre os começos de sua vida, no interior de Alagoas, na cidade de Quebrangulo (não Quebrângulo, como geralmente se diz), onde nasceu. “Mas isso tudo está contado em “Infância”. Valeria à pena repetir?” E como eu dissesse que sim, resumiu: “De minha cidade natal não guardo a menor lembrança, pois saí de lá com um ano. Criei-me em Buíque, zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco, para onde, a conselho de minha avó, meu pai se transferiu com a família. Em Buíque morei alguns anos e muitos fatos desse tempo estão contados no meu livro de memórias.

Abro o volume, para conferir, e, entre outras coisas, lá encontro este perfil psicológico do velho Ramos, traçado pelo filho: “Tinha imaginação fraca e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só acreditava nas contas correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que papel aguenta muita lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934 considerava-os duvidosos”.

De quem o romancista teria herdado, então, o gosto pela literatura? Talvez do avô paterno, cujo retrato desbotado costumava admirar no álbum que se guardava no baú, e de quem admite que tenha recebido em legado “a vocação absurda para as coisas inúteis”. De sua mãe, o espírito infantil recolheu esta impressão: “Uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, várias bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”, ente difícil que na harmonia conjugal “se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que batiam no cocuruto, dobrados, e tinham a dureza de martelo”.

De Buíque, onde o romancista frequentou a primeira escola, experimentou os primeiros desânimos diante dos livros didáticos do Barão de Macaúbas e viveu algumas das inesquecíveis aventuras de sua meninice, a família mudou-se para Viçosa, não a de Minas, terra do presidente Bernardes, mas a açucareira do interior de Alagoas. O que foi a extensa caminhada, de dezenas de léguas, desde os campos ralos, povoados de xiquexiques e mandacarus, até uma nova paisagem, de vegetação densa e muito verde, longa viagem feita em lombo de animal, está contada numa das melhores páginas de “Infância”.

De Viçosa, Graciliano passou a Maceió, onde frequentou um colégio mau; voltou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior do Estado. Em Palmeira dos Índios chegaria a prefeito, e foi graças a dois relatórios que escreveu que se tornou conhecido. Mas não precipitemos os acontecimentos.

Estamos ainda em 1914. Nesse ano realiza Graciliano sua primeira viagem ao Rio, tendo trabalhado como foca de revisão. No “Correio da Manhã” e no “O Século”, de Brício Filho, não passou de suplente de revisor, trabalhando apenas quando o revisor efetivo faltava. Em “A Tarde”, porém, um jornal surgido naquela época para defender Pinheiro Machado, chegou a revisor efetivo. Morou em várias pensões, naquele Rio dos princípios do século, que tantos cronistas já têm descrito. Os antigos endereços ficaram-lhe na memória, e sem qualquer esforço o romancista os vai citando: Largo da Lapa 110; Maranguape 11, Riachuelo 19. Todos numa zona então muito pouco recomendável, porque bairros de meretrício, de desordeiros e boêmios.

Nessa sua primeira viagem à Corte procurou aproximar-se de algum escritor, fez camaradagem literária?

- Nenhuma. Os escritores daquele tempo eram cidadãos que, nas livrarias e nos cafés, discutiam colocação de pronomes e discorriam sobre Taine. Machado e Euclides já haviam morrido, e os anos de 1914 e 1915, em que estive no Rio, assinalam, na literatura brasileira, uma época cinzenta e anódina, de que é bem representativo um tipo como Osório Duque Estrada, que então pontificava.

Focou aqui até quando?

- Até 1915. Depois de curta e nada sedutora permanência na capital, achei melhor voltar para Palmeira dos Índios, onde já havia deixado um caso sentimental e onde minha família estava toda sendo dizimada pela peste bubônica. Num só dia perdi dois irmãos. Alarmado, e também desgostoso com a vida que levava, tratei de voltar para Alagoas. Em outubro de 1915 casei-me e estabeleci-me com loja de fazendas em Palmeira dos Índios. A mesma loja que fora de meu pai.

Nessa ocasião já tinha preocupações literárias?

- Lia muito e escrevia coisas que inutilizava ou publicava com pseudônimos.

Quer revelar alguns desses pseudônimos?

- Você é Besta.

Fazia versos?

- Aprendi isso, para chegar à prosa, que sempre achei muito difícil. Tendo vivido quinze anos completamente isolado, sem visitar ninguém, pois nem as visitas recebidas por ocasião da morte de minha mulher eu paguei, tive tempo bastante para leituras. Depois da Revolução Russa, passei a assinar vários jornais do Rio. Desse modo me mantinha mais ou menos informado, e os livros, pedidos pelos catálogos, iam-me do Alves e do Garnier, e principalmente de Paris, por intermédio do Mercure de France.

Então, se procurava manter-se tão bem informado a respeito do que se passava no Rio e no resto do mundo, deve ter acompanhado, lá de Palmeira dos Índios, o movimento modernista?

- Claro que acompanhei. Já não lhe disse que assinava jornais?

E que impressão lhe ficou do modernismo?

- Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.

Não exclui ninguém dessa condenação?

- Já disse: salvo raríssimas exceções. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que, aliás, não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado” é como as “Sextilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos. Tive de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto? Isso justifica uma glória literária?

(Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue.)

- Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mais arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira – o que era um erro – fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho Tique-Taque”, de Medeiros de Albuquerque; “Tilburi de Praça”, de Raul Pompéia, “Só”, de Domício da Gama; “Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos de Sara”, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão a ideia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade. Porque se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente.

Quer dizer que não se considera modernista?

- Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.

E como foi que chegou a prefeito da cidade?

- Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito, naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando (o sistema no Brasil anterior a 1930), e fiquei vinte e sete meses na prefeitura.

Consta que, como prefeito, soltava os presos para que fossem abrir estradas...

- Não era bem assim. Prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer, no município de Palmeira dos Índios, um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil.

Em que ano foi isso?

- Em 1930.

O ano do relatório...

- Os relatórios são dois: há o de 1929 e o de 30.

Relatórios do prefeito ao governador do Estado, dando contas de sua administração, não é?

- Justo. Apenas, como a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro. Houve jornais que o transcreveram integralmente.

E assim nasceu o escritor...

- Não. Nasceu antes. Mas tinha o bom senso de queimar os romances que escrevia. Queimaram-se diversos. “Caetés”, infelizmente, escapou e veio à publicidade.

Numa edição Schmidt...

- Exato. Por intermédio de Rômulo de Castro, Schmidt, que aqui no Rio lera os meus relatórios, pediu-me que lhe enviasse artigos para a imprensa. Como não me interessasse fazer carreira no jornalismo, nem construir nome literário, recusei-me. Aliás, nessa ocasião já estava de mudança para Maceió, pois fora nomeado diretor da Imprensa Oficial. Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de 1931. Não suportando os interventores militares que por lá andaram, larguei o cargo e voltei para Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz “São Bernardo”. Estava no capítulo 19, capítulo que escrevi já com febre, quando adoeci gravemente com uma psoíte, tive de ir para o hospital. Do hospital ficaram-me impressões que tentei fixar em dois contos: “Paulo” e “O Relógio do Hospital” – e o último capítulo de “Angústia”. No delírio, julgava-me dois, ou um corpo com duas partes: uma boa, outra ruim. E queria que salvassem a primeira e mandassem a segunda para o necrotério. Estava convalescendo, em janeiro de 1933, quando tive notícia da minha nomeação para diretor da Instrução Pública. Não acreditei.

Qual o interventor que o nomeou?

- O capitão Afonso de Carvalho, hoje coronel. Foi disparate. Permaneci no cargo até 3 de março de 1936. Em 1933 Schmidt lançara “Caetés”, que eu trazia na gaveta desde muito tempo. Naquele dia do mês de março de 1936, porém, sem qualquer explicação, fui preso e remetido para o Recife, onde passei dez dias incomunicável. Depois fui metido no porão do “Manaus” e vim para cá. Tive dez ou doze transferências de cadeia.

Qual o motivo da prisão?

- Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam. De qualquer maneira, acho desnecessário rememorar estas coisas, porque tudo aparecerá nas “Memórias da Prisão”, que estou compondo.

Foi assim, então, que veio para o Rio?

- Foi. Arrastado, preso.

Mas valeu a pena, não?

- Sinceramente, não sei. Nunca tive planos na vida, muito menos planos de sucesso. Depois daquela experiência da mocidade, o Rio não me atraía. No entanto vim, no porão do Manaus, e aqui vivo.

(Estávamos, portanto, diante de um antipará. Os “parás”, na saborosa classificação de Jaime Ovale, são “esses homenzinhos terríveis que vêm do Norte para vencer na capital da República; são habilíssimos, audaciosos, dinâmicos e viam primeiro que tudo o sucesso material, ou a glória literária, ou o domínio político”. Que pensaria Graciliano dessa fauna? Lanço a pergunta e a resposta não tarda.)

- Está claro que existe um “exército do Pará”. Na maioria dos casos, porém, os seus milicianos já chegam feitos do Norte. Aqui vêm apenas colher os louros, ou, mais positivamente, as vantagens. E no Rio em geral definham, tornam-se mofinos. Ignoro se também sou “Pará”. Nunca fiz coisa que prestasse, mas ainda assim, o pouco que fiz foi lá e não aqui. Onde a vida não nos deixa tempo para nada. Hoje leio apenas jornais, um ou outro romance. De manhã escrevo; à tarde saio para as minhas ocupações (inclusive para o “papo” na livraria); à noite trabalho. Onde iria achar tempo para leituras? E se não tivesse lido um pouco no interior, onde os dias são intermináveis, seria inteiramente analfabeto.

Quer dizer que achava preferível, para o escritor, a vida na província?

- No Nordeste não podemos falar em “provincianismo”, luxo dos Estados grandes; São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul. Nós, do Nordeste, temos de ser “municipais” ou “nacionais”. E, a ter de morar em qualquer dos Estados daquela região, acho preferível o interior às capitais, porque estas, seus mexericos, seus grupinhos literários, suas academiazinhas, seus institutos históricos, são sempre muito ruins. Já no interior poderá um homem entrar em contato íntimo com a terra e o povo. É, por exemplo, de onde vem à força de um José Lins do Rego, de uma Raquel de Queirós, de um Jorge Amado.

Sabe que é apontado como um dos nossos escritores modernos que melhor manejam o idioma?

- Conversa. Talvez, se houvesse alguma verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do Nordeste, que falam bem. É lá que a língua se conserva mais pura. Num caso de sintaxe de regência, por exemplo, entre a linguagem de um doutor e a do caboclo – não tenha dúvida, vá pelo caboclo, e não erra. Note que me refiro ao caboclo do sertão. O do litoral vai-se estrangeirando.

Mas não me venha dizer que seu aprendizado da língua se fez apenas com os caboclos de Buíque e Palmeira dos Índios.

- Claro que não. Muitas coisas não poderiam eles ensinar-me. Está visto que tive de chatear-me lendo gramáticas. E arrepiei-me com a leitura dos frades.

Consta que você, como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, é grande leitor de dicionários.

- Consta e é verdade. Dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato.

Acha isso uma qualidade?

- Não sei. O que sei é que não há talento que resista à ignorância da língua.

Poderia, hoje, deixar de escrever?

- Quem me dera poder deixar.

Sua obra de ficção é autobiográfica?

- Não se lembra do que lhe disse a respeito do delírio no hospital? Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportarem de modos diferentes, é porque não sou um só. Em determinadas condições, procederia como esta ou aquela das minhas personagens.

Já se pode viver, no Brasil, da profissão de escritor?

- Não creio. A última edição de minhas obras redeu-me 50 contos. Da edição americana de “Angústia”, recebi 10 contos apenas. Tenho também três livros traduzidos para o espanhol. Mas os negócios na Argentina e no Uruguai andaram mal. Como não tenho o hábito de frequentar os suplementos e as revista ilustradas, a literatura me rende pouco.

Que outras atividades exerce?

- Trabalho no “Correio da Manhã” e sou inspetor de ensino secundário no ginásio São Bento.

Gosta do emprego que tem?

- É-me indiferente. Trata-se de uma sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca tive uma falta nem tirei licença.

E no “Correio da Manhã”, qual o seu serviço?

- Corrijo a gramática dos repórteres e noticiaristas.

Gosta de jornalismo?

- Não. Nem me considero jornalista.

Com essa vida de jornal, naturalmente dorme tarde.

- À uma hora. E me levanto às sete.

Nos seus livros trabalha, portanto, apenas de manhã.

- Exato. Até as onze, mais ou menos.

E para trabalhar, exige um bom ambiente ou não liga a isso?

- Trabalho em qualquer parte. “Angústia” foi escrito em palácio, quando eu era diretor da Instrução Pública de Alagoas. “São Bernardo”, em péssimas condições, numa igreja. Qualquer canto me serve. Mas disponho, hoje, em casa, de uma confortável sala de trabalho: isso que os burgueses costumam chamar “escritório”.

Gosta da casa onde mora?

- Em qualquer lugar estou bem. Dei-me bem na cadeia. Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos.

(Casado duas vezes, Graciliano tem seis filhos e duas netas. Pergunto-lhe se costuma ajudar a mulher em casa, e ele se espanta.)

- Já faço muito em pagar as despesas. Aliás, tenho horror a compras. E quando ouço o telefone, tranco-me.

Aos domingos, o que costuma fazer?

- Em geral escrevo pela manhã e à tarde durmo.

(O autor de “Vidas Secas” não faz visitas, não vai a concertos nem a conferências e não gosta de música. Tem, entretanto, um velho hábito: vai diariamente à Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, e fica lá várias horas, num banco que já é quase propriedade sua, localizado no fundo da loja.)

- Muitas vezes vou lá dormir. Mas aparecem amigos, conhecidos, e toca-se a conversar.

(Em virtude desse hábito, muita gente pensa que Graciliano dá a vida por um “papo”. Ele, porém, desfaz-me essa impressão.)

- Quase sempre converso forçado, porque chegam pessoas. Mas na verdade, muitos dias preferiria ficar quieto, sem trocar palavra. Também é fato que lá aparecem bons amigos, desses que a gente revê com prazer.

(Como Manuel Bandeira, Graciliano recebe inúmeros originais, para ler e dar opinião. A Bandeira dirigem-se, sobretudo os jovens poetas ainda incertos quanto à própria vocação. E os que se iniciam na prosa, geralmente procuram mestre Graciliano. Este, assim, tem sempre uma quantidade enorme de originais para ler.)

- É maçada. Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos Estados, que desejam, é claro, alguns elogios. Já aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins: afirmar, sem leitura, que tudo é magnífico.

(Os escritores jovens do Brasil, que dos mais distantes Estados remetem originais para Graciliano Ramos, em busca de uma opinião, e nem sempre recebem respostas, ou a resposta que esperavam, podem, entretanto, considerar-se vingados: na própria casa do romancista surgem originais, e originais que ele tem, forçosamente, de ler, e talvez percorra com olhos mais benignos: os contos de seu filho Ricardo, de 19 anos, e de sua filha Clara, quatro anos mais moça que o irmão. Ambos têm vocação para as letras. Ricardo, jornalista, já tem publicado alguma coisa, naturalmente com a chancela paterna. E, ainda que Graciliano nos afirme o contrário, nos diga que nenhum deles lhe pede opinião, é divertido imaginar o romancista, cansado de emendar o português dos noticiaristas do “Correio da Manhã”, e de ler originais que lhe chegam, às dezenas, de todo o país, ter, em casa, de dar opinião sobre os trabalhos dos filhos.)

(Pergunto qual a sua impressão dos contos de Ricardo Ramos, e ele não se nega a opinar.)

- Regulares. Tem jeito e poderá fazer coisa que preste.

E Clara?

- É ainda criança. Tem 15 anos apenas e está concluindo o curso secundário. 
(Despedindo-me de Graciliano, depois de longa conversa que aqui tentei reproduzir, faço-lhe uma última pergunta: Acredita na permanência de sua obra? E sem qualquer pose, sem nada que deixasse transparecer falsa modéstia, antes dando a impressão de que falava com absoluta sinceridade, esse pessimista seco e amargo respondeu-me.)

“- Não vale nada; a rigor, até, já desapareceu.”



Nota: Entrevista publicada na “Revista do Globo”, edição nº 473, em 18 de dezembro de 1996. E posteriormente no livro “República das Letras”, de Homero Senna, editora Civilização Brasileira, na Revista A Bula de 21 de outubro de 2013 e agora no Bússola Literária e no Sentinela Cultural em 04 de fevereiro de 2014.


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